Entrevista a Carlos Saboga
P.: No seu filme anterior, Photo, em que fala dos anos 1960/70, vistos a partir de hoje, havia, digamos, um acerto de contas com a História recente de Portugal, em particular a última década da ditadura fascista, que poderíamos também ler como o seu acerto de contas com essa história. Agora, em A Uma Hora Incerta, vai lá mais atrás, ao Portugal salazarista de 1942, no período da Segunda Grande Guerra, num filme de época. Parafraseando Alexandre O'Neill, Portugal é uma questão que tem consigo mesmo?
CS. : Em todo o caso, para continuar a parafrasear O'Neill, não é o "meu remorso". De facto, se os dois filmes que realizei decorrem ambos em Portugal, parece-me que, no fundo, tanto um como o outro questionam mais a época do que o país. Se alguma questão tenho ainda com Portugal não é certamente em termos identitários ou de acerto de contas. Terá sido. Mas após todos estes anos de separação, Portugal é, para mim, sobretudo uma língua e uma memória. Devo acrescentar que não sou do Benfica nem o fado é, de todas as músicas, a minha preferida.
P.: A questão do exílio forçado, aqui através de dois refugiados de guerra franceses, volta a estar presente, agora de forma distinta.
CS.: Talvez, sei lá, porque o exílio, forçado ou escolhido, é um ponto de partida dramaticamente interessante que permite ao autor um olhar, digamos, mais distanciado sobre as duas margens, a que se deixou e aquela a que se abordou. Mas suponho que a autobiografia não deva ser totalmente alheia a esta atracção pelos exilados com o vago perfume de deserção, de traição até... mais o consequente sentimento de culpa que os rói...
P.: Naquele "mundo fechado", onde todos parecem esconder um segredo, o inspector Vargas acaba por ter um comportamento diferente do que seria de esperar de um inspector-chefe da PIDE, ao contrário de Jasmim, o seu subalterno. Isso deve-se ao facto de ter saído do país, para combater na Flandres na Primeira Grande Guerra? A “outra guerra”, como Laura lhe chama, ao que ele responde, que há só uma guerra, contínua, e que não há nenhum sítio seguro.
CS.: Acho que Vargas é, depois dos dois franceses, o terceiro exilado do filme, latente, mas radical, porque não acredita sequer que haja um porto de abrigo possível. É um morto em suspenso. Um "estrangeiro". A experiência da Flandres, o sopro da morte no campo de batalha, parecem tê-lo convencido de que a guerra é a inelutável condição dos homens. É o que o leva provavelmente a fechar-se aos outros. E aos sentimentos.
P.: Ilda, a filha adolescente, tem uma enorme vontade de viver, sempre atenta aos ruídos e aos sinais que vêm do exterior. Simultaneamente, sente uma enorme paixão pelo pai, também física, incestuosa, que ela própria revela quando fantasia ao ler o episódio das filhas de Lot do Velho Testamento.
CS.: Ilda é o oposto de Vargas. É a sua vitalidade, a sua sede de reconhecimento por parte do pai que fazem avançar a acção. Nem a traição, nem o crime a farão recuar.
P.: O título do filme, A Uma Hora Incerta, vai, de algum modo, no sentido de que o acaso acaba por ter muitas vezes um papel decisivo na vida de cada um. E que as vidas se resolvem nesses lugares de "passagem, ou a meio caminho" como foi Portugal para os refugiados de guerra naquele tempo, como é a passagem do hotel para o anexo, onde o filme se resolve.
CS.: Porque não?
Na realidade, o título roubei-o a um poema de Primo Levi, Ad ora incerta, roubado por sua vez ao provérbio latim Mors certa, hora incerta.
P.: Tem uma longa e premiada obra como argumentista, e trabalhou com grandes realizadores. Disse numa entrevista que muitas vezes os argumentistas se sentem, de certa forma, frustrados porque o resultado nunca é como tinham idealizado no papel. No decorrer da rodagem e montagem deste filme o Carlos Saboga realizador alterou muito o que o Carlos Saboga argumentista tinha escrito?
CS.: A letra foi relativamente alterada (a carne é fraca).... O espírito manteve-se inalterado.
Devo acrescentar que, mesmo antes de ter realizado o meu primeiro filme, sempre considerei que os realizadores tinham todo o direito de chamar a si o que eu havia escrito. É a regra do jogo. Em contrapartida, parece-me menos legítima a ignorância geral com que a crítica contempla habitualmente o trabalho do argumentista.
P.: Volta a trabalhar com Mário Barroso, que também já fizera a fotografia de Photo, e com o qual trabalhou como argumentista nas duas longas que Barroso realizou, Um Amor de Perdição, adaptação contemporânea da obra de Camilo, e O Milagre Segundo Salomé, adaptação do romance de José Rodrigues Miguéis, sobre o Portugal da primeira república. A fotografia é extremamente importante na criação desta atmosfera opressiva que o país vivia.
CS.: Trabalho com o Mário Barroso desde o fim dos anos 70, se contarmos as curtas metragens meio realizadas e os projectos frustrados. O seu papel nos dois filmes que realizei foi essencial.